quinta-feira, novembro 01, 2012

Liberdade

"Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.

O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
"

Fernando Pessoa



Falando em poemas e em democracia, como deixar passar ao lado este magnífico hino libertário?

Na adolescência, quando o li pela primeira vez, adorei a noção de "não cumprir um dever". Achei-a profundamente tentadora - libertadora. Depois, com a idade e com a responsabilidade com que acabamos por ter que enfrentar a vida de adultos, vem a anulação do querer face ao dever. Queremos comer um gelado, mas não devemos, porque engorda. Queremos ir ao cinema, mas não devemos porque amanhã temos que acordar cedo. Queremos ficar à conversa a noite inteira, mas não devemos porque temos um prazo para cumprir. Queremos comprar "aquelas" botas, mas não devemos porque são caras. Tanta coisa que queremos, mas que não devemos. E isso faz parte de ser "adulto". Só as crianças confundem querer com dever (e com poder) e por isso fazem birras - porque acham que basta querer e que só por querer se pode e se deve ter. No fundo, ser criança é ser um libertário. E só as crianças podem ser completamente libertárias, porque a responsabilidade é-lhes exógena - está nos os pais, nos professores, nos adultos em geral.

Mas ser adulto, ensinam-nos, não é isso. Ser adulto é fazer escolhas e muitas vezes sacrificar o querer no altar do dever. Faz parte do "pacote" e aprendemos que ser livre é algo muito diferente de fazer tudo aquilo que queremos porque com a liberdade (querer) vem sempre a responsabilidade (dever) e é no eterno balanço entre ambas que temos que viver.

E é exactamente por vivermos no choque permanente entre o nosso querer e o nosso dever, que é bom (e libertador) não o cumprir, de vez em quando. São pequenas indulgências que nos concedemos. Infantilidades, talvez, pelas quais depois seremos inteiramente responsáveis. E, também, só por isso é que vale a pena.

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